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13/07/2020

ANÁLISE: “LEMBRANÇA DE MORRER", DE ÁLVARES DE AZEVEDO


Lembrança de morrer

(Álvares de Azevedo)



Quando em meu peito rebentar-se a fibra
Que o espírito enlaça à dor vivente,
Não derramem por mim nem uma lágrima
Em pálpebra demente.

E nem desfolhem na matéria impura
A flor do vale que adormece ao vento:
Não quero que uma nota de alegria
Se cale por meu triste passamento.

Eu deixo a vida como deixa o tédio
Do deserto, o poento caminheiro
— Como as horas de um longo pesadelo
Que se desfaz ao dobre de um sineiro;

Como o desterro de minh'alma errante,
Onde fogo insensato a consumia:
Só levo uma saudade — é desses tempos
Que amorosa ilusão embelecia.

Só levo uma saudade — é dessas sombras
Que eu sentia velar nas noites minhas...
De ti, ó minha mãe, pobre coitada
Que por minha tristeza te definhas!

De meu pai... de meus únicos amigos,
Poucos — bem poucos — e que não zombavam
Quando, em noite de febre endoudecido,
Minhas pálidas crenças duvidavam.

Se uma lágrima as pálpebras me inunda,
Se um suspiro nos seios treme ainda
É pela virgem que sonhei... que nunca
Aos lábios me encostou a face linda!

Só tu à mocidade sonhadora
Do pálido poeta deste flores...
Se viveu, foi por ti! e de esperança
De na vida gozar de teus amores.

Beijarei a verdade santa e nua,
Verei cristalizar-se o sonho amigo....
Ó minha virgem dos errantes sonhos,
Filha do céu, eu vou amar contigo!

Descansem o meu leito solitário
Na floresta dos homens esquecida,
À sombra de uma cruz, e escrevam nelas
— Foi poeta — sonhou — e amou na vida.—

Sombras do vale, noites da montanha
Que minh'alma cantou e amava tanto,
Protegei o meu corpo abandonado,
E no silêncio derramai-lhe canto!

Mas quando preludia ave d'aurora
E quando à meia-noite o céu repousa,
Arvoredos do bosque, abri os ramos...
Deixai a lua prantear-me a lousa!




Análise interpretativa:
"Lembrança de morrer" é um poema que desde seu título já expressa um dos principais aspectos da segunda geração romântica: o apego a morte. Ao longo do texto, veremos o tempo todo traços do individualismo típico do período, assim como a idealização da mulher amada e a paixão pela vida boêmia, acompanhados de um sutil niilismo, visto principalmente nas primeiras estrofes.

Na primeira estrofe, o eu lírico abre o poema dizendo que, no momento de sua morte, espera que ninguém a lamente, nem chore pela mesma. O pensamento segue na próxima estrofe, onde ele reforça a mesma ideia, dizendo que espera que a felicidade alheia não seja abalada pela sua ida. A terceira estrofe tem o papel de sintetizar o que sente o eu lírico, que leva a vida entediado, e sente que deixar de viver é simples e de certa forma acolhedor. A estrofe a seguir mantém o raciocínio, e o narrador fala de uma das únicas saudades que leva dessa vida, que é da vida desregrada, característica intrínseca do ultrarromantismo, que é inclusive um dos motivos pelo qual os autores desse período morrem tão precocemente.

O que vemos nessas quatro primeiras estrofes é o desprendimento do eu lírico com o propósito da vida e o aceitamento da morte. É possível identificar esse comportamento na grande maioria das obras da segunda geração romântica, onde a vida é vista como uma experiência de angústia e a morte é a única saída, daí vem o apego fúnebre.

Na quinta e sexta estrofes, vemos a continuação da exaltação da vida noturna, juntamente de um novo elemento: a família. O eu lírico expressa a saudade que sentirá de seus pais e de alguns poucos amigos, o que é algo incomum nas poesias desse período, visto que o narrador tende a transparecer uma personalidade egocêntrica e individualista.

Com a sétima estrofe vemos mais um elemento típico da segunda geração romântica: o sentimento incondicional de um amor idealizado. A única possível manifestação de tristeza vinda do eu lírico perante a morte, seria a lembrança de sua amada e sua inabilidade de concretizar sua paixão com ela. O cenário ideal dos poetas dessa época eram lugares horríveis, mórbidos, obscuros e tempestuosos, diferente apenas quando o autor se envolve no devaneio, que sempre terá aspecto paradisíaco e, em sua maioria, envolverá a presença da idealização da amada.

A estrofe seguinte dá sequência ao sonho de estar com tal mulher, e diz ainda que, se um dia houve motivo para viver, esse motivo foi ela e a esperança de um dia tê-la. Ainda na nona estrofe, vemos o narrador aceitado o fato de sua morte e fantasiando, uma última vez, com a "virgem dos errantes sonhos", esperando talvez encontrá-la na pós-vida.

As últimas três estrofes são uma conclusão, o encerramento de uma "despedida" do eu lírico. As estrofes remetem ao lugar ideal dos poetas citado, citado anteriormente. A solidão, a floresta, a noite, a lua, a cruz que representa um cemitério, assim como um resquício da religiosidade vista na primeira geração romântica. De forma geral, o último desejo do narrador é que a noite o proteja e o ame, assim como fez por ela.



Takeshi Kovacs, pairando sobre a cidade futurística.


O apego a morte e a idealização da mulher amada nos dias de hoje

A série da Netflix, Altered Carbon, é um prato cheio para quem busca características e lugares comum do período ultra romântico na atualidade.

Na adaptação megalomaníaca dos livros de Richard Morgan, Altered Carbon se passa num futuro distópico, onde, com a criação dos chamados cartuchos, as pessoas tem suas consciências transferidas para um dispositivo que permite a viagem entre mundos e a troca de "capas", nome dado aos seus corpos, que agora são descartáveis e podem ser trocados a qualquer momento, pela quantidade de dinheiro certa.

Durante toda a série, veremos críticas a desumanização das pessoas com a chegada da possibilidade de ser imortal, e como a existência de uma elite eterna é intrinsecamente ligada a subordinação eterna dos menos favorecidos.

Takeshi Kovacs, um revolucionário (ou terrorista, dependendo do lado da história) que nos é apresentado como personagem principal, é revivido após 250 de sua "morte" para investigar o assassinato de Laurens Bancroft, um magnata de 300 anos que se recusa a acreditar na hipótese de sua morte ter sido um suicídio.

O protagonista não quer realizar o trabalho, visto que na época de sua revolução, lutou justamente contra a ideia de imortalidade implantada com a chegada dos cartuchos. Como seu plano era retornar ao descanso eterno, ele toma como seu objetivo provar tudo do que a Terra tem para oferecer no seu último dia de vida. Nesse momento vemos claras semelhanças aos lugares comuns do ultrarromantismo, como a vida boêmia e desregrada, visto que o personagem se determina a usar toda droga existente e se aventurar em qualquer lugar que lhe forneça descanso e prazer.

Ao longo da série também vemos a idealização de sua mulher amada, Quellcrist Falconer, líder da resistência da qual Kovacs participava em vida. Ela também já está morta, mas o protagonista está a todo momento tendo conversas consigo mesmo e com a lembrança idealizada que tem da amante. Ele a põe num pedestal, onde todas as suas ideias, aspirações, convicções, desejos e prazeres se encontram ali, numa única figura deificada, a quem o personagem é apaixonado cegamente.

A afeição a morte é vista, também, logo nos primeiros episódios, quando Takeshi se coloca num lugar de culpa pela morte de Falconer, e, juntamente ao fato de que foi ressuscitado num mundo que era perverso e elitizado, exatamente como ela havia previsto, ele considera o suicídio, pois enxerga isso como a única forma de se livrar da angústia de viver num mundo perdido, e longe de seu amor.

Além, é claro, do personagem Poe, que é uma caricatura do autor Edgar Allan Poe, onde o próprio personagem diz que se nomeou assim em referência ao romancista.

O universo da série é imenso e múltiplas histórias são contadas simultaneamente ao longo dos episódios, o que requere atenção redobrada  ou até mesmo assistir uma segunda vez. Pra quem gosta da temática cyberpunk, suspense, investigação e muitas revisitações aos ideais da segunda geração romântica, é uma ótima indicação.