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13/07/2020

ANÁLISE: “O NOIVADO DO SEPULCRO”, DE SOARES DE PASSOS


“O Noivado do Sepulcro”

(Soares de Passos)

Balada


Vai alta a lua! na mansão da morte
Já meia-noite com vagar soou;
Que paz tranquila; dos vaivéns da sorte
Só tem descanso quem ali baixou.

Que paz tranquila!... mas eis longe, ao longe
Funérea campa com fragor rangeu;
Branco fantasma semelhante a um monge,
D'entre os sepulcros a cabeça ergueu.

Ergueu-se, ergueu-se!... na amplidão celeste
Campeia a lua com sinistra luz;
O vento geme no feral cipreste,
O mocho pia na mármore cruz.

Ergueu-se, ergueu-se!... com sombrio espanto
Olhou em roda... não achou ninguém...
Por entre as campas, arrastando o manto,
Com lentos passos caminhou além.

Chegando perto duma cruz alçada,
Que entre ciprestes alvejava ao fim,
Parou, sentou-se e com a voz magoada
Os ecos tristes acordou assim:
"Mulher formosa, que adorei na vida,
E que na tumba não cessei d'amar,
Por que atraiçoas, desleal, mentida,
O amor eterno que te ouvi jurar?

Amor! engano que na campa finda,
Que a morte despe da ilusão falaz:
Quem d'entre os vivos se lembrara ainda
Do pobre morto que na terra jaz?

Abandonado neste chão repousa
Há já três dias, e não vens aqui...
Ai, quão pesada me tem sido a lousa
Sobre este peito que bateu por ti!

Ai, quão pesada me tem sido!" e em meio,
A fronte exausta lhe pendeu na mão,
E entre soluços arrancou do seio
Fundo suspiro de cruel paixão.

"Talvez que rindo dos protestos nossos,
"Gozes com outro d'infernal prazer;
"E o olvido cobrirá meus ossos
"Na fria terra sem vingança ter!"

– "Oh nunca, nunca!" de saudade infinda,
Responde um eco suspirando além...
– "Oh nunca, nunca!" repetiu ainda
Formosa virgem que em seus braços tem.

Cobrem-lhe as formas divinas, airosas,
Longas roupagens de nevada cor;
Singela c'roa de virgínias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palor.

"Não, não perdeste meu amor jurado:
Vês este peito? reina a morte aqui...
É já sem forças, ai de mim, gelado,
Mas inda pulsa com amor por ti.

Feliz que pude acompanhar-te ao fundo
Da sepultura, sucumbindo à dor:
Deixei a vida... que importava o mundo,
O mundo em trevas sem a luz do amor?

Saudosa ao longe vês no céu a lua?"
– "Oh vejo sim... recordação fatal!
– "Foi à luz dela que jurei ser tua
"Durante a vida, e na mansão final.

Oh vem! se nunca te cingi ao peito,
Hoje o sepulcro nos reúne enfim...
Quero o repouso de teu frio leito,
Quero-te unido para sempre a mim!

E ao som dos pios do cantor funéreo,
E à luz da lua de sinistro alvor,
Junto ao cruzeiro, sepulcral mistério
Foi celebrado, d'infeliz amor.

Quando risonho despontava o dia,
Já desse drama nada havia então,
Mais que uma tumba funeral vazia,
Quebrada a lousa por ignota mão.

Porém mais tarde, quando foi volvido
Das sepulturas o gelado pó,
Dois esqueletos, um ao outro unido,
Foram achados num sepulcro só.

Análise interpretativa:

O poema mais célebre de Soares de Passos, “O Noivado do Sepulcro” (obra publicada no ano de 1856 com o título “Poesias”), exemplifica a psicologia do Ultrarromanstismo, onde as principais características dessa geração encontram-se na obra.

 O amor e a mulher amada, idealizados, acima de todas as convenções sociais (­─ e até mesmo, “espirituais”); ambientes fúnebres, sombrios; e personagem pessimista. Todas esses temas descrevem resumidamente, esse enredo sobre um amor que supera a morte e fez um casal de esqueletos/fantasmas se unirem pelos laços da eternidade.

Na primeira estrofe, percebe-se a valorização da morte. O personagem descreve seu ambiente idealizado, a paz nos sepulcros. Na segunda estrofe, insere-se a fuga da realidade: o elemento fantástico, a presença do sobrenatural: o personagem surge como fantasma que se levanta de seu sepulcro.

Na terceira estrofe, é descrita a aparência do fantasma. Sua luz sinistra ofusca o brilho da lua (podendo ser comparado, também, á beleza idealizada da época, na palidez, na aparência fúnebre).

Ainda na terceira estrofe, o homem morto ao deparar-se com seu túmulo, questiona-se de suas dores da vida. O romantismo faz questão de colocar a “noite”, isto é, o obscuro, o irracional, como princípio de sua filosofia.

Na quarta e quinta estrofes, o fantasma caminha pelo cemitério, onde encontra o túmulo de sua amada. Na sexta, sétima e oitava estrofes, o discurso é substituído pelos pensamentos do homem morto, que continua a amar sua “namorada”, acreditando, porém, que ela não mais o ama. Sofre e revolta-se por pensar que ela teria sido infiel.

O trigésimo sétimo verso, da décima estrofe, segundo Gustavo Ramos, “a expressão “protestos nossos” demonstra o espírito de revolta do romantismo, neste caso, lutar contra as convenções sociais em nome de um amor que ultrapassa qualquer fronteira. Fica, portanto, subentendido que o casal enfrentou, durante a vida, dificuldades frente à sociedade, e o amante quer que sua amada honre o seu juramento de fidelidade depois de tantas agruras.

Nas demais estrofes, a mulher (também em forma sombria, em ecos) confirma a promessa de amor feita a ele. E é narrado o encontro entre os dois, onde o casal se une em esplendorosa paixão, com exageradas declarações à luz do luar.

Na última estrofe, o casal concretiza esse amor e os esqueletos de seus corpos são encontrados em um sepulcro só, o que nos dá ideia da união eterna pós morte.



O "Mal do Século" e "O Noivado do Sepulcro" na contemporaneidade

Apesar de a Segunda Geração Romântica ter ocorrido por volta do século XIX, ainda é possível observar as mais diversas formas de expressão com fortes características desse período.

Desde peças de teatro, filmes, bandas de rock e até os estilos de vida e moda, por exemplo; remetem à atração pelo sombrio e a obscuridade. Um grande exemplo, são os filmes do cineasta Tim Burton, onde o diretor sempre apresenta aspectos “góticos”, fantasiosos (fuga da realidade), excêntricos e sombrios.

O filme de animação em stop motion, A Noiva Cadáver” (‘Corpse Bride’), de 2005  apesar de baseado num conto russo-judaico do século XIX (período do Romantismo)  apresenta grande semelhança com o poema “O Noivado do Sepulcro”, onde ambos abordam temas como amor inalcançável e a morte.

Além de seus ambientes e aspectos sombrios, no longa é possível notar características como a valorização da morte, por exemplo, onde a sociedade é representada em tons cinzentos e azulados, e o mundo-dos-mortos é representado com cores vivas como o verde, rosa e roxo.

O filme conta a história do jovem Victor, que está prestes a se casar, é arrastado para outro mundo por uma noiva-cadáver, que o deseja para si. Vale a pena conferir! *Atualmente, é possível encontrá-lo no catálogo da Netflix.